sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Quando fiz minha primeira faculdade, que ficou incompleta, tinha a professora que falava de Adorno, que pra mim era só um nome bizonho e engraçado, de pouco respeito. Mas fiquei atenta e atônita quando, em sua conversa sobre o autor, ela exibiu "Arquitetura da destruição", documentário sobre a Alemanha nazista. Que horror, pensei, ainda bem que isso de nazismo ficou pra trás. A gente sempre quer se aliviar do peso da realidade mesmo que seja fechando os olhos para ela ou, como diz a sabedoria popular, tapando o sol com a peneira. Eu era menina jovem, recém saída do interior para morar e estudar na capital e pensava, naquele tempo doce, que o auge do que mais tarde descobriria como "mal-estar na civilização", ufa, já havia passado e era, portanto, passado. Como se a humanidade já houvesse atingido o auge da barbárie, que não teria porque se repetir. Sabia de nada, eu, a inocente. 

Tinha também a professora que falava de Benjamin. Ela não falou sobre "escovar a história à contrapelo", sobre isso descobri bem mais tarde, mas ela falava de arte, da "obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica". Uma conversa toda difícil que me fez pensar no quanto, em minha vida, os desenhos animados tinham sido importantes para me aproximar da música clássica. Eu não conseguia entender aquele parlatório todo da aula e, como tudo era festa, não me esforçava para isso. 

Arquitetura da destruição:


O coelho de Sevilha: 



segunda-feira, 20 de julho de 2020

Dark

Como usar a série DARK em suas redações?

 "Sofreu assim no exílio, procurando a maneira de matá-la com a sua própria morte, até que ouviu alguém contar a velha história do homem que se casou com uma tia que, além disso, era sua prima, e cujo filho acabou sendo avô de si mesmo." (Cem anos de solidão, Gabriel García Marquez)  

É tarde, o frisson já passou, mas eu também quero escrever algo sobre Dark.

Algo pouco, viés. Pequeno olhar, ou quem sabe delírio, sobre uma cena que ilumina a obscura trama. Na metade da terceira e derradeira temporada, no quarto episódio, a revelação: o estranho do lábio leporino, o sem nome, que é três, passado presente e futuro que caminham juntos, o vemos escrevendo. E ele escreve o que? Um livro. Espécie de Melquíades, ele escreve o livro que, de tanto figurar nas mãos do pastor Noah, ganha ares de Sagrada Escritura. E é. "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus", lê-se no Evangelho segundo João, na nossa bíblia. "O começo é o fim, o fim é o começo", é como Ele, o estranho, passado presente e futuro que caminham juntos, arremata a sua.

Na capa, a triqueta, símbolo que representa a Santíssima Trindade (na mitologia cristã), o Infinito, a Eternidade... Sic Mundus Creatus Est. No conteúdo da obra, começo meio e fim, coordenadas de como aquela trama, aquele drama todo deve se desenrolar por todo o sempre ( tal livro é a "bíblia", a "teogonia" que rege o mundo de Jonas/Adam; deve haver outro, um livro espelho, que rege o mundo de Martha/Eva). O Estranho, passado presente e futuro que caminham juntos, Ele é o começo, a origem, o nó. Sem nome próprio, e ele mesmo conta que nunca recebeu um, na única cena em que é visto abraçando sua mãe, Martha, é para o espanto desta. O abraço é mal correspondido. Sozinho, ele só interage consigo mesmo, ainda que através de outros. E tudo em seu mesquinho universo de mundos espelhados existe para que a tragédia que Ele é ocorra repetidas, infinitas vezes. Parece uma neurose.

Mas como Ele não viu que uma só Cláudia transitava dois mundos? É que enquanto Ele, como um bebê, tá lá no esforço de fazer com que o mundo dos pais gire por causa e em torno dele, Ele não vê. Esse sujeito é falho, um Deus nem onipotente, nem onisciente, nem onipresente. Assim como o Eu/ego não é senhor em sua morada, lembro-me aqui de Freud, Ele não é senhor em seu próprio universo, há uma falha. Cláudia.

Na cena seguinte, o momento de sua concepção: sem banho, ao som triste e melancólico da bela canção de Asaf Avidan, Jonas e Martha transam e ela engravida daquele que será seu bisavô. O looping que se repete over and over está contido ali, no encontro de dois mundos que se originaram da explosão de um terceiro, original, fora do tempo que forma o nó, entretanto, verdadeira causa deste. A música é espetáculo a parte: The labyrinth song é o lamento de um Teseu que canta para sua Ariadne, "oh Ariadne, eu falhei com você neste labirinto do meu passado." Quem nunca? E sim, tem o adorável nada por acaso detalhe de que o mito grego do Minotauro, no qual Ariadne liga-se e guia seu amado através de um fio pelo labirinto da besta fera, é referência constante na Série. E o que é Dark senão amontoado de pessoas perdidas no labirinto de um passado que imprime supostos futuros já de antemão determinados? Ok, é mais que isso. Mas parece uma neurose.

Em tempo, na mesma cena: enquanto Silja (irmã de Cláudia e Jonas, tia-vó de Bartosz, que será pai de seus filhos Noah e Agnes) vai, ainda na barriga de sua mãe, não se sabe para onde, Cláudia aproveita a bela trilha sonora e vai lá ter sua primeira relação sexual com Tronte, seu trineto (seria nada estranho um bebê com rabo de porco ter aparecido nesse rolo todo). "Sorte" que não é dele que Cláudia engravida, caso contrário, ela e sua filha Regina estariam, tal como os outros, irremediavelmente presas ao nó, àquele Universo de dois mundos que jamais deveria ter existido, falha na Matrix. 




quarta-feira, 8 de julho de 2020

O mundo anda tão complicado

Adoro as músicas da Legião Urbana que cantam sobre o simples, sobre o cotidiano. Um pé atrás: quando gosto de uma música na maioria das vezes é porque algo do som agradou-me, a melodia, se posso assim dizer. Mesmo naquelas cantadas em português, o que chega primeiro são os instrumentos musicais, voz aí incluída sim, mas como blá blá blá, nhem nhem nhem. Talvez por isso nunca tenha conseguido acompanhar a paixão de que sofre minha bolha pela MPB. 

Mas, retornando ao que dizia, adoro a poesia simples, que canta o cotidiano, de certas canções da Legião. E como "o mundo anda tão complicado", tenho pensado muito nesta música com a qual tanto me identifico, que fala de um momento tão gostoso: quando dois, do jeito que podem, juntam-se para partilhar uma vida sob o mesmo teto, deixando "a segurança do seu mundo por amor". É isso. 



 

domingo, 31 de maio de 2020

Vejam só, que bonita a forma como Dostoiévski  escreve sobre lembranças infantis ao narrar sua personagem que perdeu a mãe aos três anos de idade e que conserva desta a lembrança de seu rosto e de seus carinhos. Escreve ele que as lembranças infantis "podem ser conservadas (e todo mundo sabe disso) desde a mais tenra idade, até desde os dois anos, mas durante toda a vida só se manifestam como uma espécie de pontos de luz saídos das trevas, de um cantinho de um imenso quadro que se apagou e desapareceu por inteiro, excetuando-se apenas esse cantinho." Achei bonito isto, fez-me pensar no Freud das lembranças encobridoras e no quanto esses cantinhos iluminados da memória são fotografias que recobrem enquadramentos psíquicos que nos perseguem, que se reatualizam e se eternizam no moldar nossa realidade, sempre psíquica. Na lembrança que este garoto guardou de sua mãe, ela esta muito aflita, chorando, o abraçando à ponto de machucar e, desesperada, o ergue em direção à imagem de Nossa Senhora, como quem o entrega para que a Virgem o proteja. "Que quadro!", escreve Dostoiévski. Será acaso tal personagem tornar-se noviço? À propósito, estou falando de Aliócha Karamazov. 



terça-feira, 31 de março de 2020

Pandemia I - Ela

O que mais lhe chama a atenção é que, passados quase 15 dias de isolamento, suas noites tem sido ótimas, quer dizer, tem dormido muito bem. O medo de perder quem mais ama, o medo do depois, a realidade tem sido paralisante. No entanto, dorme feito bebê. Nada daquele acordar no meio da noite com o coração disparado, tão típico de seus dias de angustia. Sono pesado, sono gostoso. Sonha. Sonhos que se sabem sonhados mas dos quais se esquece. Leu dia desses em Freud que esses são os sonhos que melhor cumprem sua função, que é a de manter o sono [1]. 
Sua primeira reação diante do vírus foi querer sumir do mundo. Tem um pouco de preguiça, talvez seja inveja, daqueles que desde o primeiro dia de quarentena tinham algo para dizer ou fazer dela. Ela, ela não sabe de nada. Entende o que está acontecendo, mas não compreende. Porque, lá no seu fundo mais apavorado, acredita que isto tudo só será compreendido depois. O que não impede as pessoas da tentativa de simbolizar o que é e o que virá disso tudo, é, deve ser inveja o que ela sente. Inveja e admiração. Porque ela não consegue. O que consegue é visualizar a última cena de Melancolia e desejar que acontecesse. É um desejo mentiroso, mas vejam que interessante: ela não quer morrer, não sozinha. Antes, deseja que se for para Um dos seus morrer, que todos pereçam, tamanho é o medo do que virá depois. 
Mas ela dorme feito bebê (aqueles raros, que dormem a noite toda). Goza, na dependência de um homem. 

[1] - FREUD, S. Alguns complementos à interpretação dos sonhos. Obras completas, vol.16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 320: "Segue-se que para o Eu que dorme é indiferente, no conjunto, o que durante a noite é sonhado, desde que o sonho realize sua incumbência, e que os sonho de que nada sabemos dizer após despertar são aqueles que melhor cumpriram a sua função." 
31-03-2020.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Em uma análise não se trata de encontrar a parte que falta, mas de fazer da falta que nos habita causa que impulsiona, causa de desejo. "Não ceder de seu desejo" é poder perceber para que lado Eros aponta e caminhar corajosamente nesta direção.





domingo, 16 de dezembro de 2018

Em um marca-páginas precioso está escrito que "Não há amigo mais leal que um livro". Isto, como toda verdade, não é de todo verdade, a começar pelo fato de que nem todos estão dispostos a amigar-se ou tornar-se amante, investir libido na literatura. Triste realidade? Diga-me você, mas fato é que a crise editorial que o Brasil atravessa neste exato momento atesta isso. Ler funciona para alguns e parece que não são muitos. Ou seria verdade que os leitores estariam migrando para formas não impressas de leitura? Pode ser, mas  os memes e o youtube fazem mais sucesso que downloads de livros... Bem, para estes alguns, sim, o livro é o provável amigo mais leal que pode existir. Mesmo quando nos trai as expectativas, pois não importa: a mobilização de afetos, sua transformação e destino final, quando se experimenta alguma literatura, penso que é o que importa.
   
... 

E assim, por vezes gosto de centrar-me nos problemas ínfimos e ilusórios que a vida psíquica me impõe. No momento ocorre uma briga que deveria ser de Titãs mas que se assemelha, não sei bem o por que, à uma briga de galos. A luta parece-me desigual, e o vencedor anunciado antes do fim é Gabriel García Márquez. Nabokov foi o primeiro a subir no ringue, com sua Lolita, e apenas Lolita. Lo-li-ta. Para mim, às vésperas de terminá-la (e sempre sou assaltada de bizarra ansiedade ao aproximar-me do fim de uma história), apesar de algum encanto, Chatita. Terminar o livro, questão de honra, não de gosto, sob a interrogação do porque este seria um clássico, é isso e apenas isso o que acredito mover-me. A cada duas das intermináveis páginas, o afeto não quero te ver tão cedo, típico de um amor clandestino do qual se goza sem querer admiti-lo, aflora. Neste percurso, quase que num tropeço, cruzei com uma declaração de Nabokov sobre Dostoiévski, segundo o qual seria um escritor de terceira categoria e com fama incompreensível. Que audácia! Que ódio, que raiva! Quem é este homem de escrita pedante, redundante, que não sai do lugar, para falar semelhante asneira? Desgraçado, Nabokov idiota, cara de mamão, sim, vou te xingar feito uma lolita! Foi momento de deixar a leitura de lado, aquela heresia abriu-me a porta da traição. Foi nessa agonia que Gabriel apareceu com suas Memórias de minhas putas tristes. 

Ali encontrei poesia, numa história que, contada sob outra forma, facilmente se classificaria como repugnante. Mas espere aí: o mesmo pensamento pode se aplicar à Lolita. Pois o problema de Lolita é que, a despeito da não-fluidez do texto, cansativo e arrastado pacas, há algo ali que, antes de repugnar, perturba. E excita. Repare bem, mulher, na Lolita que te habita,  e nos inúmeros Humbert Humbert que desfilam pelo mundo. Falo de espíritos: no corpo físico, nem toda Lolita é criança, nem todo Humbert Humbert é  um quarentão. A realidade é e sempre será psíquica. 

Mas sigo Nabokov nesta batalha desleal, para ver onde vai dar, e até o momento sequer descobri quem é, segundo Lacan, o verdadeiro perverso da história. Como o livro termina, ainda não sei. Mas o fim de Memórias de minhas putas tristes, não demorou dois dias para chegar e, sedenta de Gabriel, logo Cem anos de solidão caiu em minhas mãos. Menos de 50 páginas e eu já estava hipnotizada, jurando amor eterno, e foi aí que o galo Nabokov, ensanguentado, como que atravessado por uma lança, deitou-se morto no ringue. Porém, graças à seu fantasma, terminarei de ler Lolita, enquanto perambulo insone por Macondo...


Macondo.